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Deus é mais que a religião

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A religião sempre será apenas referência a Deus, nunca encontro direto com ele
Comecei a escrever as seguintes reflexões um mês atrás, quando em Belo Horizonte se realizava o congresso da Sociedade de Teologia e Ciência da Religião. Mas depois veio o Papa Francisco, e decidi deixar passar uns dias. A visita do Papa foi muito comentada como reforço para a religião católica, e isso não era alheio à intenção, embora eu acredite que a intenção principal, pelo menos do Papa, foi mostrar que o evangelho de Jesus é boa-nova também para os jovens e o povo das periferias. Portanto, houve algo que é mais que ‘a religião’.
Quem reflete um pouco entende logo que o que chamamos Deus não pode ser contido nos conceitos de nossa razão, pois é o horizonte último de tudo o que somes, temos e conhecemos. O olho não se enxerga a si mesmo, o ouvido não se ouve a si mesmo. Quando olhamos no espelho, só vemos nossa imagem espelhada. E mesmo com as mais avançadas tecnologias, só percebemos aquilo que a tecnologia mostra. 
O “primeiro e último” não faz parte de nossa percepção. Por isso nos referimos a essa realidade (pois se não for real nós também não o somos) por expressões simbólicas. E quando essas expressões simbólicas começam a configurar um conjunto identificável, surge algo que costumamos chamar de religião, um conjunto de expressões, ações e instituições que se referem a essa realidade primeira e última e nos remetem a ela. Tal ‘definição’ é, evidentemente, também, um modo simbólico de falar. Não nos satisfaz referir-nos a ‘Deus’ como a um ‘objeto’ circunscrito por nossa percepção racional. Daí a teologia ou discurso ordenado sobre Deus não poder ser uma ‘ciência exata’, se é que tal ciência existe...
Quero aqui tocar em dois pontos: a transcendência de Deus em relação à religião e a diferença entre teologia e ciência da religião. A religião é um ‘sistema simbólico’ para se referir, por palavras, ritos e instituições, ao Transcendente. Ou então, para expressar como nós nos percebemos diante do horizonte último de nossa existência como pessoas e como comunidade, sendo que pessoa e sociedade se implicam mutuamente: ninguém é pessoa sozinho e a sociedade só funciona se as pessoas forem respeitadas como pessoas.
Deus, portanto, não pode ser reduzido à religião, a nenhuma religião. A religião sempre será apenas referência a Deus, nunca encontro direto com ele. Talvez possa dizer-se que a fé, no sentido de confiança esperançosa, ultrapassa os limites da religião, dirigindo-se em direção ao Transcendente que a religião significa sem captá-lo. Por isso, a fé, muitas vezes, sente que a religião não consegue expressar tudo o que ela intuitivamente percebe. 
A religião é um sistema, a fé um movimento. Movimento capaz de modificar a religião ou de mudar de religião, se isso corresponder ao que se procura. Por isso, a casa da religião deve abrir janelas para o Transcendente –o Transcendente real–, e não substituí-las (as janelas abertas) por pinturas sobre uma parede fechada, mostrando apenas miragens. A religião deve manter sua discrição, para não apagar a fé. Deus é maior.
Já as ciências da religião descrevem o que se pode captar, por observação científica, a respeito da religião. Inútil esperar delas um discurso sobre o Transcendente. No máximo podem dar, por exemplo na psicologia ou fenomenologia religiosa, uma descrição daquela busca do Transcendente que chamamos a fé. Podem descrever a busca humana de Deus, não Deus mesmo. Ou podem descrever o sistema de símbolos de determinada religião, ou da religião em geral, ou sua organização ou entrelaçamento com os demais setores da sociedade, como na sociologia religiosa.

Será que, então, sobra ainda um papel para a teologia, se Deus lhe escapa e aquilo que busca a fé, em última análise, é impossível de ser sondado. Penso que sim. A transcendência de Deus não é alheia à racionalidade que nossa razão pode captar, e o movimento da alma, embora preceda e supere o que a razão pode captar, não é irracional. É exatamente essa dimensão racional –a racionalidade com a qual percebemos a dimensão do Transcendente em nossa vida– que constitui o ‘logos’, a razão e discurso da teologia. É isso o ‘discurso sobre Deus’ (Deus enquanto aparece no nosso horizonte). No caso do Transcendente cristão, a teologia é o discurso racional sobre Deus que se manifesta em nossa história no homem Jesus, centro de referência da religião cristã.
A pergunta é, então, se esse discurso racional da fé diz algo a mais que as ciências da religião. Será que se pode dizer que na teologia fala o sujeito da fé, o crente, enquanto nas ciências da religião tanto o crente como sua crença são objetivados? É uma pergunta que se pode fazer, a reflexão sobre isso está aberta. E nem deve ser fechada, mas ficar aberta para lembrar a existência desses dois modos diversos de abordar a religião. E que nenhum dos dois, e nem a própria religião, esgotam aquilo a que chamamos de ‘Deus’.


Johan Konings Johan Konings nasceu na Bélgica em 1941, onde se tornou Doutor em Teologia pela Universidade Católica de Lovaina, ligado ao Colegio para a América Latina (Fidei Donum). Veio ao Brasil, como sacerdote diocesano, em 1972. Foi professor de exegese bíblica na Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre (1972-82) e na do Rio de Janeiro (1984). Em 1985 entrou na Companhia de Jesus (jesuítas) e, desde 1986, atua como professor de exegese bíblica na FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte, onde recebeu o título de Professor Emérito em 2011. Participou da fundação da Escola Superior Dom Helder Câmara. 

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